Prelúdio - Gaspar Enmark-Lázaro

A chuva começa a ficar mais forte e os moradores começam a esvaziar os corredores e buscar abrigo contra o frio.

A água já começara a se acumular nos ralos nos cantos do andar, mas sem nenhum sinal de que haveria inundação naquela noite. A avenida se estendia abaixo, com alguns ônibus passando de tempo em tempo.

Caí a noite.

O barulho repentino e estridente da chuva batendo na chapa de metal que encimava a janela do quarto foi o suficiente para acordar Gaspar Enmark-Lázaro. Apesar do sobressalto, o misto familiar da escuridão e dos ruídos noturnos foi o suficiente para afastar a sensação vaga de terror que sempre tinha quando despertado bruscamente.

Eram só sete e meia, a noite acabava de começar. Cedo para os padrões dele, mas agora não fazia sentido voltar ao sono, nem conseguiria mesmo que tentasse. Só restava começar cedo os trâmites do dia. Resignado, escancarou as persianas que cobriam o pequeno pedaço de vidro acrílico que separava o apartamento 22-043 do mundo exterior.

Àquela altura, a luminosidade da rua não era suficiente para dar conta sequer do cubículo que lhe servia de quarto. Mesmo assim, ele não ativou o sistema de luzes. Preferia o pouco de tungstênio amarelado que chegava pelas janelas à fluorescência esverdeada das lâmpadas que se encontravam por toda Vega-3. De qualquer modo, ele gostava da semi-escuridão. Sempre melhor para fazer o que ele fazia nas horas vagas. Ou quando realmente ia ao trabalho, como queira. À meia-luz, levantou-se para dar início de verdade ao dia.

Sua higiene feita, já plenamente acordado, pôs seu casaco e foi em direção à porta da frente. Hora de ver o que havia para hoje. Afinal, aquelas encomendas não iam chegar ao seu destino sozinhas.

- Chico, procurando serviço? - falou um rapaz parado no corredor.

O rapaz não tinha mais de 16 anos, era magro e tinha um rosto cansado. Vestia um casaco, mas ainda assim tremia de frio.

- Leo mandou que te chamasse, perguntou se você entregaria mais dois decodificadores no 5°. E ai?

[Leo, descendente de cubanos, possui um "negócio" informal de decodificação de sinal de televisão, já que nenhuma empresa atende a região. Há boatos de que os jogos de poker são organizados por ele também.]

Um bom começo de noite. Serviço fácil, e não era todo dia que aparecia algo assim tão rápido. Sem muita chance de dar problemas, aparentemente. O Leo era um cara com um certo nome por aí. Tava quase bom demais pra ser verdade.

Gaspar não conhecia o cubano, mas isso não era surpresa, com a quantidade deles que viviam naqueles lados de Vega-3. Também não era estranho que Leo usasse sempre um diferente para passar seus recados, afinal, se um fosse pego pelos "seguranças" do conjunto, ele não teria como deixar passar nada comprometedor.

- Hm. Eu não planejava descer tanto hoje, mas pelo Leo eu posso fazer o esforço. Me dê aqui o pacote.

Gaspar se virou para ir embora. O caminho era longo até o 5°, ainda mais que, com os elevadores constantemente quebrando e sendo consertados de qualquer jeito, você nunca sabia quantos andares ia ter que descer a pé. Às vezes um só já era problema o suficiente pra valer a noite e o troco da entrega. E por falar nisso...

- Ah. O Leo mandou avisar quanto guardou pra mim, ou "esqueceu" de novo?

O garoto tirou um envelope de dentro do casaco.

- Aqui tem 300 de adiantamento e ele disse para passar no 12° para receber os 150 de antes. Algo sobre precisar falar contigo.

Após dizer isso ele pegou o corredor, provavelmente ia perturbar algum outro morador.

Gaspar rapidamente escondeu o envelope em um bolso interno da jaqueta, fechando o zíper para garantir. Precaução nunca era demais por aqueles lados em que ele estava prestes a ir bater. Isso feito, era hora de ir.

Em uma noite normal, ele iria ao 5º primeiro para depois ir falar com o Leo e tentar espremer o troco todo de uma vez, sempre mais fácil pra não ter que ouvir desculpa e conversinha sobre pagar depois. Mas esse recado chamou a atenção, e a promessa de receber o atrasado foi o suficiente para convencê-lo a mudar os planos. "Vamo ver o que o velho tá armando dessa vez", pensou.

Ao se aproximar dos elevadores setoriais, Gaspar torcia para estarem operando normalmente. Não era pouca coisa descer até a "rua", como os moradores chamavam os andares mais próximos do térreo. Com sorte, os setoriais estariam funcionando e parando ao menos próximo de onde ele precisava ir, e ele não precisaria gastar metade da noite nessa corrida. Se não, ia ser uma viagem para conferir os centrais, e se mesmo esses estivessem com problema... Ele não queria nem pensar em ter que pegar as escadas, ainda mais com a água que invadia os corredores. Gaspar odiava levar chuva.

Foi com isso em mente que apertou o botão para chamar a gaiola de metal.

A gaiola deslizou com um tranco para a posição correta e as portas se abriram. Dificilmente aquilo dava um sinal de que o elevador só desceria com Gaspar até o 17°.

O ruído da chuva estava ficando cada vez mais forte e por um momento o silêncio fez sentir como se aquele fosse um prédio habitado por fantasmas.

Um desavisado talvez achasse que seria impossível alguma coisa esvaziar aqueles corredores que no dia-a-dia eram tão apinhados de gente, mas quem vivia ali a certo tempo sabia como uma chuvarada era capaz disso.

A empresa responsável pela construção de Vega-3 parecia ter feito um esforço especial para tornar o tempo ruim ainda mais desagradável para os moradores. Corredores que rodeavam espaços abertos de convivência não tinham qualquer proteção contra o vento frio e a água da chuva, canaletas muito estreitas dificultavam o escoamento, corredores inclinados no sentido errado faziam a água correr para longe dos ralos e entrar por debaixo das portas em alguns andares...

Ao menos a arquitetura hostil facilitava o trabalho, diminuia as chances de encontrar com um curioso inconveniente ou esbarrar num doente qualquer a fim de arranjar problema por aí. Antes a companhia dos fantasmas.

Nem tudo era negativo nas noites chuvosas, afinal. E o elevador parecia que ia cooperar. Gaspar apertou o botão para o ponto do 12º em que queria descer e esperou.

Com um solavanco, o elevador parou subitamente no 17°. Mal sinal, mas de Vega-3 podia-se dizer que um elevador nunca caiu. Acidentalmente.

As portas se abriram com um rangido. Um cheiro de charque inundou as narinas de Gaspar, vindo de um dos apartamentos próximos com a porta aberta e Gaspar pode ouvir a voz de Rafa.

Rafa e Dê eram dois irmãos que viviam no prédio, apesar de seu andar e apartamento serem um mistério. Eles eram especialistas, em quê não era exatamente muito claro, mas se sabia que eles conseguiam resolver problemas que mais ninguém conseguia. O que eles estariam fazendo por ali?

O cheiro do charque serviu para chamar a atenção de Gaspar. Antes de sair, ele comera alguma coisa processada, mas nada que se comparasse a um bife de charque frito na hora. O cheiro do dinheiro era forte, mas se calhasse de ele poder aproveitar e filar um pouco da comida no caminho do Leo... O apartamento era no caminho das escadarias mesmo, não custava tentar.

Chegando à porta, ele bateu duas vezes e, sem muita cerimônia, foi abrindo. Nem importava tanto de quem fosse o apartamento, se Rafa estava ali, ele era o tíquete. Da entrada, falou um pouco maia alto do que o necessário:

- Opa Rafa, tudo certo?

A cena à frente de Gaspar era comum. Uma mulher servia os irmãos e eles a observavam atentamente. Ela os requisitara, sem dúvida, para resolver um problema.

Rafa ignorou Gaspar e disse para a senhora:

- Pode por mais um prato, por favor?

Quando ela se foi, ele se virou para Gaspar e disse:

- Sente-se, Gaspar, ouça conosco a história dela.

Sucesso. Ele estava meio esperando ser expulso dali, mas agora, na pior das hipóteses, ele ia pagar pela comida escutando uma conversa qualquer sobre os problemas de uma desconhecida e depois seguir caminho. Na melhor, bem, Gaspar não era um homem de deixar passar oportunidade de fazer negócio. E se os irmãos estavam ali, a chance era de que a coisa fosse interessante. O Leo podia esperar um pouco. Não era todo dia que se tinha a chance de comer um charque fresco.

Com um leve aceno de cabeça em direção a Dê, Gaspar sentou-se à mesa e esperou.